Eva colectiva
Confinamento como janela para o mundo e a alma
Marcella Anversa
Fui convidada pela querida Carol – assim que a chamamos de forma carinhosa aqui no Brasil – a dividir e multiplicar pensamentos juntamente com outras mulheres a respeito do que estamos vivendo nesse inesperado momento de pandemia. Aqui tentei reunir minhas opiniões, meus sentimentos e, graças a esse convite, também nasceu a vontade de ir em busca da história de outras mulheres como inspiração.
Muito prazer! Meu nome é Marcella, sou ítalo-brasileira, mãe, esposa, filha, irmã, amiga, nutricionista e tenho 35 anos. Estou muito feliz com essa convocação da querida Carol e espero trocar com você, querida (o) leitora (o) desse livro, pensamentos, reflexões sobre essa loucura que estamos vivendo e, por que não, um pouco de história?
O que vamos aprender com tudo isso que estamos passando? Vamos nos tornar seres humanos melhores depois que tudo isso se for? É a pergunta que mais ouço nos dias de hoje e uma das minhas inspirações para escrever esse texto.
Ainda não tenho uma resposta. Se tomarmos como ponto de referência a História, já tivemos epidemias muito mais letais e, infelizmente, a humanidade não mudou. As transformações que vejo são na medicina, na tecnologia, na gestão pública, mas em termos de humanidade, para a grande maioria, infelizmente parece que não evoluiremos.
No momento, minha maior preocupação é me cuidar para postergar o máximo que posso meu contato com o vírus. Estar próximo de algo que pode ou não tirar minha vida me faz pensar diariamente noque de mais precioso tenho a perder.
E eu quero continuar lutando em busca dos meus sonhos ao lado do companheiro que escolhi para essa vida, compartilhar e aprender com todos que amo e ver meu filho crescer e tentar fazer o melhor que posso para deixa-lo pronto para esse mundo.
Há muito tempo não passávamos por algo parecido. Arrisco-me a dizer que desde a segunda Guerra Mundial nada “saía do lugar” como agora. Nunca poderia imaginar que um dia viveria uma situação onde eu não pudesse ter total controle sob meus atos e não pudesse fazer o que eu quisesse.
Antes de pensar novamente em alguma resposta, existe um outro fator que me angustia muito mais: a miséria que afeta 25% do meu Brasil. Vivo em um país onde uma parte podemos classificar como Suíça e a maioria como Burundi (África). Uma das técnicas adotadas pela maioria dos países na contribuição do combate à pandemia, o isolamento social, na realidade da grande maioria dos brasileiros é impossível de se aplicar. Se ficarem em casa, morrem de fome. Muitos nem casa têm.
E para coroar tudo de assustador que estamos vivendo por causa de um vírus, no atual momento, contamos por aqui com uma horrorosa e assustadora agonia política.
Não podemos descartar que vivemos uma pandemia midiática. O excesso de informação, muitas vezes contraditórias, podem nos fazer viver em função do medo. A meu ver, a maneira de nos tranquilizarmos para agirmos de forma segura é nos identificarmos com uma linha de pensamento e nos cercarmos de todas as possíveis informações que as alimentam.
Por defender o isolamento, me sinto privilegiada em poder ficar em casa. Orgulho-me de conseguir me programar dentro da minha rotina para não ter que me expor excessivamente e tirar, dentro de um hospital, o lugar daquele que não pode fazer o mesmo que eu. Estar em casa, literalmente confinada, me trouxe a oportunidade de me reinventar. Esse convite mesmo me deu a oportunidade de sair da minha zona de conforto e ir em busca de informações e conteúdos que nem sempre me sobravam tempo de me alimentar.
Sou mãe de um lindo menino chamado Joaquim, com quase 3 anos. Assim que fiquei grávida tomei a decisão de me dedicar 100% à maternidade. Foi mágico ver, no início desse ano, 2020, aos 2 anos e meio, Joaquim ir para a escola pela primeira vez. Ver nos olhinhos dele a alegria de poder brincar com os coleguinhas, ser tão bem estimulado e se encantar pelos cuidados daqueles que os cercavam era muito especial. Sem contar no tempo que ia passar a ter para mim. Foi libertador para nós dois. Para ele no sentido de descobertas, para mim um reencontro comigo mesma e um retorno para algumas renúncias das quais em nenhum momento me arrependo.
Confinada com uma criança de 2 anos, tive que me reinventar. Partir do pressuposto que ele é um privilegiado por poder ficar em casa com seus pais e com a geladeira abastecida, já me enche o coração de gratidão. Quando penso naqueles que não têm a mesma oportunidade que eu, não acho justo reclamar em hipótese alguma por essa nova situação e as tão inesperadas mudanças de planos que estou vivendo.
Cuidar da casa, de mim, da minha família, entre tantas outras funções que me orgulho por ter e conseguir exercer com sucesso, me despertou a necessidade de mais uma: ir em busca de histórias de outras mulheres incríveis que me inspiram e que, assim como nós nesse momento de desafios e lutas, fizeram a diferença com suas atitudes e forças. Dentre tantas incríveis mulheres, escolhi duas brasileiras, médicas, que, pelo tempo em que atuaram em suas respectivas áreas, tornaram-se um diferencial, desafiaram tudo e todos, conquistaram seus objetivos e deixaram de forma linda, condutas e cuidados que seguem adotados até hoje.
Começemos por Nise da Silveira, brasileira, nascida em Maceió, em 1905. Formou-se em 1926 em medicina na Faculdade de Medicina da Bahia, sendo a única mulher entre os 157 homens de sua turma e uma das primeiras mulheres Brasileiras a se formar em medicina. Médica psiquiátrica, ficou conhecida mundialmente por humanizar o tratamento psiquiátrico no Brasil, ser contrária às formas agressivas de tratamento utilizadas em sua época e defender o valor terapêutico entre pacientes e animais, pacientes e a arte.
Em 1936, durante a Intentona Comunista, Nise é presa por 18 meses após uma denúncia de que possuía livros marxistas. Após a prisão, Nise é afastada do serviço público por razões políticas e até 1944, ela e seu marido, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, permaneceram na semiclandestinidade.
Ao ser reintegrada ao serviço público, retoma sua luta contra as técnicas psiquiátricas que alegava serem agressivas aos seus pacientes, como por exemplo eletrochoque e confinamentos. Por conta da discordância e por se recusar a adotar tais técnicas em seus pacientes, Nise foi transferida, na instituição em que trabalhava, para o setor de terapia ocupacional, atividade desprezada pelos médicos da época, fundando em 1946 a “Seção de Terapêutica Ocupacional”. Antes de Nise, naquele setor, os pacientes executavam tarefas de limpeza e manutenção, eufemisticamente classificada de terapia ocupacional. Após sua chegada, as antigas tarefas foram substituídas por ateliês de pintura e modelagem com o intuito de estimular a expressão simbólica e da criatividade dos pacientes, reatando seus vínculos com a realidade e revolucionando assim a Psiquiatria praticada agora no Brasil.
Foram muitos anos de estudo, dedicação, aprofundamentos, obras publicadas e inúmeros os reconhecimentos nacionais e internacionais. Em 1952, ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente com trabalhos produzidos nos ateliês que criara na instituição, usando-os como possibilidade de compreensão mais profunda da esquizofrenia. Esse acervo tão valioso foi inspiração para a escrita de seu livro “Imagens do Inconsciente”, além de filmes e exposições. Em 1956, criou a Casa das Palmeiras, clínica destinada à reabilitação de ex pacientes de instituições psiquiátricas que ali podiam expressar sua criatividade e serem tratados como pacientes que apresentavam uma rotina hospitalar de tratamento, mas que estavam reintegrando à vida em sociedade.
Em 1999, aos 94 anos, Nise é internada por causa de uma pneumonia, falecendo de insuficiência respiratória aguda. Ela e seu marido optaram por não ter filhos para se dedicarem exclusivamente à carreira médica. Deixaram um lindo e generoso legado de que é possível o uso do amor e cuidado ao próximo como tratamento.
Outra grande mulher é Zilda Arns Neumann, brasileira, nascida em Santa Catarina, em 1934. Em 1959, formou-se em medicina pela Universidade Federal do Paraná e se aprofundou em saúde pública, pediatria e sanitarismo. Ao se deparar com um número significativo de crianças que eram internadas por doenças de fácil prevenção como diarreia e desidratação, Zilda passou a se dedicar e salvar crianças pobres da desnutrição, mortalidade infantil, violência doméstica e marginalidade com a ajuda de umas das principais ferramentas de maior sucesso no mundo: a educação.
Em 1980, sua experiência a levou a ser convidada pelo governo do Estado do Paraná a coordenar a campanha de vacinação para o combate da primeira epidemia de poliomielite através de um método próprio que, depois de tamanho sucesso, foi adotado pelo Ministério da Saúde. Em 1983 foi uma das criadoras e coordenadora da Pastoral da Criança, ação social que já recebeu diversos prêmios e, desde sua fundação, acompanhou 1.816.261 crianças menores de seis anos e 1.407.743 famílias pobres em 4.060 municípios brasileiros. O projeto também capacitou mais de 261.962 voluntários que levaram conhecimento sobre nutrição, educação e cidadania para milhares de comunidades pobres deste país. Em 2004, também fundou e coordenou a Pastoral da Pessoa Idosa, por meio da qual mensalmente mais de doze mil voluntários cuidam de mais de cem mil idosos em 579 municípios de 141 dioceses de 25 estados brasileiros.
No dia 12 de janeiro de 2010, Zilda parte para Porto Príncipe, Haiti, com a missão humanitária de introduzir a Pastoral da Criança no país. Após seu discurso para cerca de 150 pessoas, o país foi atingido por um terrível terremoto fazendo com que o teto da Igreja onde Zilda palestrava desabasse atingindo-a diretamente na cabeça. A Dra. Zilda Arns foi uma das vítimas dessa terrível catástrofe, morrendo na hora. Mãe de seis filhos e avó de dez netos, Zilda nos deixa uma incrível história de luta, vitória e um lindo exemplo de compaixão e amor no cuidar.
Essas mulheres foram e serão lembradas não só por suas vitórias, mas também pelos gatilhos e impulsionamentos que as fizeram trilhar seus caminhos em busca daquilo que acreditavam. Essas foram duas das incríveis histórias que escolhi para preencher parte do meu tempo nesse momento que é para muitos apenas de tristeza, agonia e medo, mas que para mim - além do sentimento coletivo de dor e angústia - também é de aprendizados, inspirações e autosuperações.
Pronto. Achei a minha resposta.
Obrigada Nise, Zilda, minhas avós, minha mãe, minhas tias, prima, amigas e tantas outras mulheres por me inspirarem, me fazerem querer ser melhor a cada dia e ter vontade de, lá na frente, olhar para trás e me orgulhar de tudo que fiz e conquistei.